domingo, 28 de março de 2010

O sr. Joaquim

a vida passou depressa. os filhos cresceram, vieram os netos, os bisnetos.. já fui vadio como o vento dedilhando com notas sentidas as emoçoes que a vida me ofereceu cantando em fado garrido as magoas que por mim passaram. estou cansado, mas nao morto. amei mil e uma mulheres, comi o pó de muitas estradas na minha febre de liberdade e fome de viver. ainda me lembro das viagens montado nos meus velhos sapatos herdados de um irmão mais velho, que entretando crescera, mas estimados como se fossem novos. a vida era dura, davamos valor a pequenas conquistas e estimavamos o que nos era querido. com uns tostões no bolso sentia-me o rei do mundo. o senhor das minhas cantilegas que o vento bradava aos céus. era feliz. num tempo em que os homens estavam confinados ao trabalho calejado da vida no campo. tantas vezes me fiz à estrada com uma misera codea de pao e uma garrafa de tinto da adega de meu pai. deambulei de baile em baile, sorrindo e conquistando meninas de bons costumes guardadas por mães beatas. e um dia apareceu ela. airosa, de pele queimada pelo sol e maos gretadas do manejar coreografado das facas da cozinha, da agulha e da enxada. a inocencia e a simplicidade dos seus modos raptaram-me o coração. encontrei nela o ninho que necessitava para parar as incessantes caminhadas pelas terras de ninguem. substituí as cordas roliças da minha até entao mulher e companheira de alegrias e tristezas, a viola, que comprei com as tostoezecos que ia ganhando nos pequenos biscates que fazia ao sapateiro lá da sitio que me viu nascer. retornei ao oficio para sustentar esta nova vida.. nao me arrependo... estou na planicie da vida, nada mais posso fazer que abraçar todos os dias a sorte de ter vivido e criado uma familia ao lado da minha esposa, tendo sempre como amante das horas vagas a minha eterna viola e muitas aventuras para contar..

foto de Tiago Ribeiro : The Shoemaker

Ana Felix

mais um dia em que o sol inunda o meu quarto acariciando-me o rosto.como sempre esboço um sorriso ao sentir este mimo que o acordar me oferece banhado pelos raios dourados que me aquecem. hoje a caricia desperta-me a necessidade de aventura, de sentir... de viver! olho para mim e nao sei nada do mundo, desconheço as paisagens, os aromas, as caras, as emoçoes de tantos lugares desconhecidos. tenho 25 anos e vi a vida a passar. aluna exemplar sempre metida em pilhas de livros que me absorveram pelas palavras e ansia de conhecimento. mas o que é conhecimento teorico sem a experiencia vivida? sem sentir cada palavra, imagem, cheiro com a intensidade do momento, agarrando nas minhas mãos e escrevendo em mim pedaços reais de historias ainda por contar. desconheço os inumeros reinos que a vida oferece mas anseio descobrir os seus pódios e instalar-me neles como soberana. ate hoje vivi limitada ao que escolheram para mim, aos caminhos que traçaram antes de eu vir ao mundo. acolho as expectativas sem me pronunciar sobre elas, obedecendo com servidão de quem presta vassalagem ao seu senhor. estou presa na formatação que se vem arrastando de geração em geração na minha familia. estudar, arranjar trabalho, casar, ter filhos, envelhecer, morrer...seguindo sempre as vontades dos ascendentes sem questionar, levando uma vida sem percalços. hoje sinto-me abafada, presa, inibida no meio de quem me devia conhecer mas desconhece. um dia desapareço.. porque nao hoje? sim porque nao? tenho umas economias que fui amealhando ao longo dos anos graças a generosas contribuiçoes por parte dos padrinhos e do pai na altura dos anos e das outras epocas festivas. agarro nalgumas peças de roupa que julgo serem essenciais e meto-as atafulhadamente dentro da mochila. é hoje! saio com passo ansioso e veloz como se tivesse as sandalias com asas de Hermes retorquindo um bom dia apressado aos meus pais. estou a tremer de excitação pela minha fuga repentina da homogeineidade dos meus dias. a respiração acelarada bombeia ar excessivamente rapido para os meus pulmões sinto que nao consigo acompanhar o ritmo a que inspiro o oxigénio. num ápice acordo do meu transe e já estou na estação com o senhor dos bilhetes a questionar-me qual é o destino.. que vou responder? nem sei para onde vou? para onde quero ir? pressiono a minha mente a decidir.. nao sei.. compro o bilhete para o comboio que vai partir daqui a 3 minutos. nao me interessa o destino. acendo um ansioso cigarro que sorvo com sofreguidão tentando acalmar os tremores e a excitação que me embriaga todas as ligaçoes nervosas do meu corpo. uma voz abafada preenche o cais de embarque avisando que o comboio da linha tres esta pronto para sair.. é agora ou nunca! mato o raio do cigarro atirando-o de rompante para o chao, é agora.. e embarco..

sexta-feira, 19 de março de 2010

Um Ultimo Prazer..

a agua vai-me cobrindo a cada passo que dou mar adentro. as bolhas de oxigénio que vou libertando bailam à minha frente encantando o meu olhar.. o ar escasseia, a garganta teima em exigir abastecimento para os pulmões que se vão enchendo rapidamente de agua salgada. este sufoco provoca-me um prazer inexplicável, todo o meu corpo estremece em mil e um arrepios, coordenados voluptuosamente  com o aperto das minhas vias respiratórias e a emancipação do batimento cardíaco. ordeno aos meus braços que parem de tentar alcançar o topo das aguas em busca da salvação.. quero ir ao fundo levando no olhar o brilho da lua.  os meus cabelos livres agora do seu peso vagueiam em meu redor ao sabor da corrente. estou a seguir o que a minha alma inconscientemente ditou ao compasso sereno dos meus passos. o frio desapareceu, mas também não sinto calor, as sensações estão a deixar de existir.. não sinto magoa, nem dor..mas sim felicidade.. no meio da imensidão do mar encontrei o meu repouso.

quarta-feira, 17 de março de 2010

O passeio de Eva..

o dia esta pincelado em tons de cinza e branco que contrasta com a fachada antiga dos edifícios. os chuviscos vão caindo suavemente caindo na pele como uma caricia. adoro os dias assim, em que vejo o mundo vestido de acordo com a minha tristeza.. estou farta de amar sem retorno, farta de ter de recorrer a meros momentos de prazer para me sentir amada.. farta de viver para o trabalho, farta de sentir que não construí um porto de abrigo. amei tantas rostos, usei tantos corpos.. magoei os que me amaram , pisando-os com as minhas teorias de independência.. com o meu grito do Ipiranga tantas vezes pronunciado com voz alterada, e nervos de aço que isolavam o meu coração e só saiam barbaridades de quem não tem alma.. ou então fugindo, deixando notas soltas com a vergonha de não encarar o amor.. só causei sofrimento, estraguei casamentos, destruí amizades, fui a prostituta da luxuria em que prostitui o meu corpo em troca de migalhas de atenção.. sempre agarrada ao bastião da independência.. empurrei o Manuel para o poço da dor, estilhaçando o seu pobre coração em mil pedaços queimando a essência do que ele foi outrora; o amor da minha vida.. a doce Amanda que abandonei do mesmo modo por me sentir presa a amarras invisíveis que só existiam na minha cabeça.. archhhhhhh e o Luís, o meu Dionísio do pecado, ao qual destruí o casamento com a mulher que o acompanhou a vida toda.. e no fim de tudo isto continuo sem saber quem sou.. sem perceber o porque da minha existência terrena, sem saber o que devo sentir. não sei onde os meus passos me levam, mas também não quero saber. a noite vai caindo lentamente e o ar arrefeceu.. a brisa do anoitecer congela-me os dedos das mãos caídas ao longo do corpo, devia apertar o casaco mas os meus braços não me obedecem.. começo a gostar deste friozinho que se vai incutindo debaixo da minha pele.. já não vejo as luzes da cidade, mas os meus passos não param, continuo sem saber para onde vou. não quero parar de andar, nem regressar ao meu covil repleto de imagens que me abafam. ouço o cantar das ondas interrompido pelo palrar das gaivotas.. inalo com sofreguidão o ar gélido que me corta os pulmões como pequenas picadas de vespa.. cheira a mar.. tenho de descer e sentir o ondular das aguas gélidas a bater nos meus pés, a areia a acariciar a minha pele.. o impacto com a agua provoca-me um arrepio profundo em todo o corpo.. olho para o céu e a lua cheia sorri para mim com simpatia.. vou entrando nas aguas calmas hipnotizada pelo reflexo da esfera lunar no azul escuro das aguas que entretanto com o breu nocturno que se foi instalando silenciosamente se tingiu.  abraço a agua com os meus braços em movimentos circulares guardando as sensações e as recordações dos bons momentos que tive rapidamente ensombrados pela névoa da solidão. o meu rosto começa a mexer-se suavemente esboçando um sorriso para a lua.. fecho os olhos e deixo-me ir.. está uma bela noite para morrer perdoa-me minha irmã Maria..
a ultima melodia de Eva... 

O arco íris de Eva

no negro da ausência de ninguém perco a bússola que me faz andar à nora.. já não sei quem sou, porque sou, o que faço aqui.. esta podridão interior esta a corromper-me as veias a um ritmo cósmico. não reconheço o reflexo que o espelho me devolve, está baço da minha respiração ofegante de quem não consegue mirar-se,  a minha visão demasiadamente turva, confusa, misturando as cores do arco íris num remoinho frenético que lentamente se torna num buraco negro.. não consigo entender o propósito da minha existência, tudo se resume a meras aparências no jogo dos bons costumes que alguém se lembrou de escrever para catalogar, rotulando o aceitável e o rejeitável..sou como sou.. mas quem sou eu? sou a imagem que dou ao mundo ou a imagem que o mundo vê em mim? porque me sinto só no meio da multidão que todos os dias entra e sai da minha vida, porque grito sem razão tentando vomitar esta dor que me trespassa? o que faço aqui? tudo o que construirei se apagará nas memorias do tempo, se desaparecer o mundo não vai parar de girar, vai continuar no seu circuito uma outra vez.. AHHHHHHH sinto o corpo a tremer iniciando mais uma possessão de raiva em que todos os meus poros se preenchem de violência incontida para com o mundo e contra mim,  não sei que merda é esta que me rasga socalcos no peito e semeia flores negras de confusão.  das colunas abafadas do computador a mensagem chega enviada involuntariamente por algum participante do programa dos finais de tarde de discos pedidos.. "Ninguem é quem queria ser.. eu queria ser ninguém..."  saboreia cada palavra absorvendo-as com todos os sentidos.. nunca pensou que uma música pudesse assentar-lhe tão bem.. agora entende o que viu no espelho.. ela viu Ninguém.. 

sábado, 13 de março de 2010

Aiiiiiiiiiiiiiiii

apetece-me gritar
afiar os ossos das mãos em carne humana
sentindo o calor do sangue a jorrar por entre os meus dedos
estripando a minha vontade
deixando-a nua, despida de todos os coletes de forças
que a prendem empurrando-a para baixo
que apunhalam o meu peito uma e outra vez
ate ficar sem forças e cair no silêncio..

quinta-feira, 11 de março de 2010

Luís ou Eva?

ventos intempestivos
abanam as finas paredes
da minha sanidade
assobios agudos esganiçam-se
por cima do bater das horas
estou só, encontro-me só
sinto-me só, vivo só...
amo por momentos
esqueço em segundos
aquilo que recolho de diversos mundos
cavalgando no cavalo de troia
em busca de Helena..
sorrisos vagos levam no seu brilho
os amores de ninguém
as canções do velhinho
o coração de alguém..

quinta-feira, 4 de março de 2010

O Mergulho de Manuel

a lareira crepitava suavemente ao fundo da sala, o cheiro da madeira de pinho a arder inundava a sala inebriando-lhe os sentidos.. roda suavemente na mão o cálice de licor observando os círculos imperfeitos que o liquido meloso deixava atrás de si através do vidro enaltecido pelo dourado que a chama lhe oferecia. o seu rosto denuncia o seu pesar, os lábio inferior capturado no meio dos seus dentes parecem conter o grito que teima subir-lhe pela garganta, os seus olhos semi cerrados escondem o brilho da lágrima que teima em vir..  o seu cabelo desalinhado e a barba por fazer escondem os músculos tensos dos seus maxilares apertados num esgár de revolta..
está assim desde que acordou na cama de Eva após uma noite de pura magia, de reencontro pelo menos assim o sentiu, amou-a tentando apagar os meses de sofrimento que a ausência inexplicável dela provocou, sem fazer perguntas, só não lhe deu o que tinha porque já ela possuía. a alma, o coração! para quê?para mais uma vez o atirar ao chão quando atendeu aquele maldito telefonema mal ele abriu os olhos e lhe sorriu.. mais uma conquista barata de certeza pensou ele. mas a alegria dela, as palavras que usou -"sabia que ligarias.." e o seguimento da conversa aliando-se ao brilho dos seus os olhos de pura excitação, o deambular nervoso como o de uma adolescente revelou-lhe que tudo foi ilusão.. e ele ali, esquecido... em silêncio vestiu-se e saiu.. ela nem sequer reparou. e agora está mergulhado no seu mundo afundando-se no sofá que já parece uma extensão grotesca do seu corpo encarquilhado pela dor ... o toque de Eva não mata.. mas aniquila..

quarta-feira, 3 de março de 2010

A música que faz Eva chorar..

Princesa Madalena..

- pai conta-me uma historia.
- ainda não é hora de dormir Madalena...
- conta na mesma, quero ver na minha cabeça o príncipe e a princesa.


quem me dera voltar a ter 4 anos e poder sentar-me no colo de meu pai encostando a cabeça ao seu peito ouvindo o bater do seu coração, sentindo a sua mão áspera a perder-se no meio dos meus cabelos.. aquela voz rouca contava-me as historias de encantar que terminavam com um final feliz, o príncipe salva a princesa do monstro, dos piratas, dos bandidos, da bruxa má.. 
eu tive essa história com o Luís, foi o príncipe que no 10º ano me defendeu dos ataques dos engraçadinhos que gozavam com o meu aparelho com elásticos cor de rosa.. como me lembro desse dia. ele era o maior, jogava na equipa de juvenis da equipa de futsal lá da terra, delegado de turma, sempre rodeado por um grupo de pessoas que variava de intervalo para intervalo.. era o rei lá do liceu.. foi o nosso primeiro contacto. nunca tínhamos falado antes. olhou-me com aqueles olhos castanhos em forma de amêndoa..e eu apaixonei-me.. foi o meu primeiro e único amor.. perdi a virgindade com ele, descobri o amor, o sexo, o prazer, a vida.. fomos para faculdades diferentes mas a ligação nunca se perdeu.. casámos um ano depois da licenciatura para felicidade nossa e dos nossos amigos que perguntavam insistentemente desde o 12º quando nos casávamos..fomos tão felizes..e agora cada um vagueia nos seus pensamentos e vive vidas paralelas..
não vem dormir a casa desde aquela conversa que me fez ver a verdade.. o meu vazio..

segunda-feira, 1 de março de 2010

O Amor

Porquê amar?
sim!
Amar por amar
Para quê, para quê?


Se gozam connosco por amar, amar
De corpo e alma para um dia voltar a chorar?


Para quê?
sim, dar amor, dar
e dar e não parar de dar 
e um dia ser triste, desolado, desalentado
por nao sermos correspondidos?
mas, porquê?


Amarei,
Voltarei a amar
Sempre que preciso 
e nos braços 
Desolados da solidão,
Gritarei amor até mais não!

(Antologia de Novos Poetas : As palavras do Amor, editora: Elefante Editores 1999)

[ escrevi este poema para um desafio literário proposto aos jovens da minha cidade quando tinha 12 anos que acabou em publicação, passado tanto tempo ainda me revejo nestas palavras. apeteceu-me partilhá-lo.. :) ]

Modas do vento..

no bailar do compasso dedilhado pelas mãos calejadas de um artista nós dançamos ao som da rebeldia que nos caracteriza... as cores da exuberância e da gargalhada estridente estão tatuadas em nossas faces que afastam as tristezas. :) sou o teu "mini ego" ves em mim a mesma fome de pó de estrada, a mesma impulsividade de ver o mundo e a urgência de sentir que fervilhava nas tuas veias quando tinhas a minha idade, sentes a tolice e a insegurança e arranjas formas de ela ser ultrapassada com um simples gesto de paciência... a amizade não escolhe idades mas sim vontades.


a ti vadio como o vento