quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Antónia mas podia ser Antonieta de "Parri de France"


O sol entra gradualmente no quarto coordenado com os ponteiros do relógio, veio avisar-me que ainda estou viva. Faz hoje 6 meses que me encontro aqui, num lugar que não me viu nascer, mas que neste momento me faz sentir em casa. Esta foi mais uma noite mal dormida, em que as recordações do meu passado assaltaram-me a mente só para me lembrar que a penitência ainda agora começou.
Tenho saudades da minha mãe. Dos tempos em que me embalava no seu colo e eu conseguia absorver o seu odor que tanto me reconfortava. Era o cheiro da protecção, hoje já não retenho na memória essa sensação nem esse aroma, esqueci-me dele no meio das pedras que encontrei ao longo do meu caminho. Em criança, gostava de correr pelos caminhos da vila quando o sol se começava a ir deitar. O brilho do basalto ao sol lembrava diamantes negros. Nasci e cresci numa vila pequena, onde toda a gente se conhece e tem algum laço sanguíneo que os une nem que seja em centésimo grau. Sempre que penso nos caminhos da vila, lembro-me de que a rua era o meu refugio, tal como o guarda-fatos do meu pequeno quarto. Visitava com frequência estes locais para me abstrair dos gritos, do cheiro a álcool e da porrada seca que o meu pai descarregava na minha mãe nos dias em que a sueca corria mal, mas o vinho lhe descia bem pela garganta. A minha mãe lá aguentava, em silêncio resignava-se com a sua sorte, na rua comportava-se como uma mulher feliz e bem casada. Claro que não enganava ninguém, toda a gente sabia que em que dias é que a sinfonia de gritos de dor actuava em minha casa. Toda a gente sabia, ninguém fazia nada. Na escola, tinha inveja das outras crianças. Os pais pareciam ser devotos a elas ou pelo menos era isso que eu via. Muitas vezes em sonhos interrompidos pela sinfonia agoniante lhe desejei a morte e que deixasse a minha mãe em paz. Mas só o conseguia desejar por breves momentos, para logo sentir o arrependimento a abalar a convicção dos meus pensamentos.
Pouco depois de ter feito 8 anos de idade, fui morar com os meus avós maternos e com os meus tios, duas ruas abaixo da minha. A situação familiar não atravessava os seus melhores dias, as dívidas acumulavam-se, as discussões eram cada vez mais frequentes, porém nunca faltou comida na mesa, pois os meus avós iam ajudando a minha mãe a governar a casa. A minha mãe era uma escrava da vida, saía para trabalhar mal o sol nascia e ainda levava umas camisas das patroas para coser sentada ao pé do lume depois de jantar. Um ano depois, rumou para a França como tantos outros portugueses e eu fiquei na pequena vila, à guarda da minha avó.
Tenho boas recordações deste tempo, costumo lembra-lo como a era dourada da minha vida. A casa estava sempre animada, os jantares eram em família, aos fins-de-semana e quando não tínhamos aulas de tarde íamos todos juntos para a vinha ou para a horta. A minha avó era rígida, educação à moda antiga, devota a São Francisco já o meu avô era mais liberal. Contava-me histórias da sua juventude, das tropelias que fazia e das dificuldades que passou em criança. Era um homem do mundo. Já o meu pai, via-o no café da esquina sempre sem sede e de copo vazio, durante muito tempo não ouvi a voz nem senti o olhar dele.
No verão em que fiz doze anos a minha mãe divorciou-se do meu pai e encontrou a paz ao lado de um homem que a estima, aos catorze o meu irmão nasceu.
A vida corria normalmente, como seria de esperar num meio pequeno até que ao entrar na adolescência comecei a sentir asfixia. As constantes viagens nas férias para o estrangeiro e os impulsos de rebeldia que emanavam das grandes cidades como Paris começavam a despertar em mim a necessidade de descobrir. Quando regressava à pequena vila sentia-me oprimida pelas pessoas que me rodeavam. O espaço parecia-me pequeno, não tinha alternativas ociosas ou culturais que me cativassem. Eu não compreendia a diferença de mentalidades e as pessoas não entendiam as minhas escolhas, o que contribuía para o meu mal-estar. Sentia-me atacada por tudo e por todos, a minha revolta e necessidade de aceitação transformaram-me num ser rebelde. Sempre fui teimosa, bastante, sempre que me diziam: não vás por aí, eu ia… O meu grupo de amigos era mais velho, os maus rapazes e más raparigas reuniam-se aos fins de tarde numa casa abandonada. Tinham feito um “gato” no poste público que ficava coladinho à janela do quarto do andar de cima. Ouvia-se rock, música electrónica, fumavam-se uns charros e bebiam-se umas cervejas. De vez em quando alguém levava os restos do jantar ou íamos à padaria que ficava na saída da vila comprar um pão acabadinho de sair do forno que devorávamos a ver o nascer do sol.
Experimentei ganza pela primeira vez aos quinze anos. Não sei se por curiosidade ou para me afirmar. Lembro-me que estávamos sentados num dos miradouros da vila, era início de primavera. A vila nesta altura cheira a flores de tília, o céu nocturno repleto de estrelas cobre as casas e mergulha nos montes. Já não me recordo a quem pertencia o rosto cujas mãos me rodou o charro, peguei nele e hesitei, eles estavam todos eufóricos a tentar queimar as asas a uma formiga, completamente sorridentes. Eu queria um sorriso, bem, não era o sorriso, mas sim a felicidade que lhe associamos. Levei o charro aos lábios e puxei o fumo. Não estava a contar com aquele sabor forte a picar-me na garganta e explodi num ataque de tosse desenfreado. Após o gozo da praxe, por não saber fumar e duns quantos ensinamentos dos peritos lá consegui fumar correctamente. As primeiras passas entraram-me directamente para o cérebro num formigueiro que partiu dos pulmões em velocidade de cruzeiro. O ritmo cardíaco disparou, os suores frios começaram a percorrer-me o corpo. Uma sensação de paz e bem-estar inundou-me. Tinha encontrado um escape.
Nessa altura, completamente farta e na revolta inconsciente de ser adolescente optei por deixar de estudar. Estava na hora de ir de encontro ao mundo. Mudei-me para França, fui morar com a minha mãe deixando no ar a promessa de não regressar.
Por muito que na minha mente eu tivesse tudo controlado, as coisas não iriam acontecer como eu tinha planeado. Na minha inexperiência de vida, tudo seria um mar de rosas. Neste ponto estava a confundir rebeldia com razão, agia consoante o pulsar do coração e não queria ouvir as vozes que gritavam para não ir por ali, mas eu fui…
Sempre fui teimosa, bastante, sempre que me diziam: não vás por aí, eu ia…
Durante os primeiros meses, o convívio com a minha mãe foi pacífico, estávamos a procurar trabalho para mim numa das "madames" dela, o meu irmão deliciava-me e o meu padrasto respeitava-me e acima de tudo, não bebia.
A imagem que a minha mãe tinha da filha não correspondia à rapariga que vivia debaixo do seu tecto nem a dela, que era a sombra da mulher silenciosa e sofredora que eu me lembrava e eu na sua memória era a menina que corria descalça nas ruas.
Apaixonei-me perdidamente aos 16, encontrava-me a trabalhar numa padaria dum amigo da minha mãe. Já saía à noite e estava a pensar em ter o meu espaço, pois as discussões com a minha mãe começavam a ser frequentes.
A perda da virgindade, não me tocou como seria suposto. Toda a ideia de romance, borboletas e fadinhas não aconteceu. Foi algo que naturalmente iria acontecer naquele contexto. Ele era mais velho, tinha experiência de vida e isso atraiu-me. Não senti prazer, desconhecia a palavra orgasmo. Durante o tempo da relação e mesmo depois disso estive conformada que o sexo era assim. Sem prazer. Quatro anos depois e de muitas historias pelo meio é que soube o que era . Pensamentos da treta já são horas de levantar…para mais um dia na prisão.